A invasão que dá nome a “The Invasion” não é apenas a óbvia, da Ucrânia pela Rússia. Vai muito além. É uma invasão de novos hábitos, incertezas e medos numa rotina outrora pacata, mas que foi feita refém pela realidade da guerra travada entre os dois países.
“Chegamos a um ponto em que somos forçados a pensar que isso é normal”, diz o diretor Sergei Loznitsa no Festival de Cannes, onde o filme é exibido em caráter especial. A seleção reforça o apoio do evento aos ucranianos, dois anos depois que a explosão do conflito levou Volodimir Zelenski a discursar, virtualmente, na mostra de cinema.
Com um pin da bandeira ucraniana na lapela do paletó, do qual escapava ainda um lencinho azul, Loznitsa se reuniu com jornalistas para falar do novo filme, mas já sabendo que o foco da conversa desviaria, inevitavelmente, para a guerra em si.
Ao seu lado, a produtora Maria Baker-Choustova, que por sua vez é russa, traduzia as respostas do ucraniano para o inglês, com os olhos tingidos por uma sombra naquela mesma cor, propositalmente exagerada.
“É assim que a mídia funciona”, segue o diretor, expressando um misto de aborrecimento e compreensão ao ser questionado se outro conflito, o de Israel contra o Hamas, fez jornais e líderes mundiais perderem o interesse pela situação da Ucrânia, mesmo com Vladimir Putin declarando que a Rússia está pronta para uma terceira guerra mundial.
“A nossa guerra continua, e se você precisa fazer essa pergunta, então você sabe a resposta. Eu acredito que [as lideranças] chegaram a um consenso, e vão apenas garantir que a guerra continue no nível atual, que não haja uma escalada.”
É um retrato pessimista, mas que não ecoa exatamente a mensagem de “The Invasion”. O documentário é mais um capítulo num projeto de vida assumido por Loznitsa, que tem dedicado seu cinema a retratar a hostilidade histórica da Rússia em relação a seus vizinhos.
O filme abre com uma longa cena de funeral –mais um naquela cidadezinha, que já assimilou os ritos fúnebres que acontecem aos montes. Aos cantos de glória a Jesus Cristo, a multidão emenda gritos de morte aos inimigos.
Dali em diante, a câmera do diretor segue por mais de duas horas aqueles cidadãos que aceitaram a realidade de sirenes mandando-os para abrigos antibomba com certa frequência. Ou com explosões ouvidas de longe e até com a caça a homens que fogem do alistamento.
Assim, são as preocupações banais que invadem o cotidiano militarizado, e não o contrário. “Este é um filme que não mostra a guerra, os soldados, em nenhum momento. Mas o inimigo está presente em cada cena”, afirma Loznitsa.
O ucraniano frequenta Cannes desde 2010 e já levou à Riviera Francesa sete filmes. Com “Babi Yar. Context”, sobre um massacre de judeus por oficiais nazistas, recebeu uma menção especial da mostra que compila os documentários de cada edição. Por “Na Neblina”, que também volta à Segunda Guerra, mas pelas lentes da ficção, venceu o prêmio da Fipresci, a Federação Internacional de Críticos de Cinema.
Mas é com “Donbass”, prêmio de direção da mostra Um Certo Olhar de 2018, com que “The Invasion” mais parece. O longa também se encarregou de mostrar o cotidiano interrompido por mísseis e sirenes da região ucraniana que o batiza, de forma ficcional.
No novo filme, Loznitsa repete, por exemplo, uma cena de casamento que já havia gravado no antecessor, em poucos minutos de tela que se abrem para várias interpretações. A vida continua? O amor prevalece? Ou seria algo mais lúgubre, já que os noivos fardados talvez não retornem para casa?
Numa das cenas de “The Invasion”, logo após a cerimônia matrimonial, o noivo retorna ao lar, mas de forma passageira, sabemos pelo uniforme. Ele beija a mulher, toma um bebê em seus braços e dá um remédio qualquer para ele. Em seguida, põe a criança na cama, senta ao seu lado, acaricia lentamente sua cabeça e solta um longo e pesado suspiro.
Não há cabeças falantes no documentário, que passa os horrores da guerra sem didatismo, mas, talvez por isso, com intensidade ainda maior. Está nos planos de Loznitsa gravar outro filme na mesma linha, sobre o qual não tem detalhes, embora não haja pressa, já que a guerra não dá sinais de estar chegando ao fim.
“The Invasion”, porém, não é pessimista. O filme começa com um funeral e termina com um nascimento, passando a imagem de um país em reconstrução. Segundo as lentes do cineasta, aquele é um povo que, não importa a adversidade, erguerá tudo de volta com as próprias mãos.