Nem sempre é fácil definir de maneira clara e objetiva o que é um bom livro —principalmente quando falamos de obras para crianças e jovens, já que muitas vezes é usada a régua da educação e da quantidade de ensinamentos que a história pode levar aos leitores, como se a literatura infantojuvenil fosse um ônibus onde lições morais ficam sentadinhas, sempre com cinto de segurança, numa viagem sem percalços em direção à cabeça de quem lê.
Pessoalmente, prefiro usar a régua do trabalho com a linguagem, da densidade narrativa, da ambiguidade, do jogo com as palavras, do óbvio apresentado de maneira surpreendente, do poder de deslocar o leitor do império de suas certezas, colocando em xeque as suas crenças. O multiartista indiano K. G. Subramanyan faz quase tudo isso.
Dois de seus livros para a infância acabam de ser lançados no Brasil pela Baião, o selo infantojuvenil da editora Todavia. “Nossos Amigos, os Ogros” e “O Rei e o Homenzinho” são histórias irmãs e esteticamente parecidas, mas são sobretudo uma homenagem à inteligência de quem lê.
Nascido em 1924 e com centenário celebrado neste ano, Subramanyan fez um pouco de tudo. Foi professor, pintor, gravurista, cenógrafo, escritor e ativista do movimento pela independência da Índia nos anos 1940. Morto em 2016, ele chegou ainda a participar da Bienal de Arte de São Paulo nas décadas de 1960 e 1970 e dedicou seu trabalho a um diálogo com a arte e a cultura popular indiana, principalmente da região de Kerala.
As ilustrações dos dois livros que chegam ao Brasil trazem essa personalidade. Gravuras em preto e branco que evocam essa estética das tradições populares, elas fazem crianças imediatamente se lembrarem dos carimbos que usam na escola, enquanto outros leitores vão estabelecer relações com as xilogravuras que estampam nossos folhetos de cordel.
Mas, além do apuro visual, é a palavra que rouba a cena. Em “O Rei e o Homenzinho”, um monarca faz de tudo para ser notado e adorado. Só que há também um homem, “um homenzinho como outros homenzinhos”, como diz o texto, traduzido pela poeta Laura Liuzzi.
Num dia em que o rei reúne a corte para ser paparicado, esse homenzinho faz toda a plateia desviar o olhar, esquecer a realeza e admirar as montanhas. O nobre, claramente desapontado, resolve agir. Arranja uma rainha, faz seu nome ser cantado nas rádios, estampa seu rosto em outdoors e ilumina seu poder em neons espalhados pelo reino. Alguma semelhança com o que vemos hoje no mundo da propaganda ou nas redes sociais?
Esse choque entre sociedade e natureza, entre nós e o planeta, também surge temperado de ironia e humor ácido em “Nossos Amigos, os Ogros”. Desta vez, ficamos sabendo que houve um tempo em que os ogros viviam entre nós, quando eles comiam parafusos, soltavam fumaça, pisoteavam flores e assustavam crianças.
Para acabar com o problema, os humanos decidem contratar empresas especializadas para acabar com essas feras. Uma encontra o paradeiro dos ogros, outra grampeia seus corpos no chão e assim por diante. “Eles transformavam dificuldade em oportunidade. Eles viam o que os outros não viam. Eles faziam o que os outros não faziam”, diz o narrador sobre essas companhias.
Não é preciso apontar as pontes com os discursos atuais papagueados por empreendedores, coaches, mentores, investidores e influencers que prometem transformar seguidores em bilionários, basta se inscrever no canal e ativar o sininho. No fim, é óbvio que eles não acabam com os ogros, mas transformam essas criaturas em algo que ainda está por aí, entre nós.
Sem cair nas armadilhas do pedagógico, Subramanyan consegue em apenas 24 páginas questionar o sistema econômico global, as relações sociais desequilibradas, o descaso com a natureza que gera crises ambientais como a do Rio Grande do Sul, a cultura do egoísmo, o individualismo predatório contra o bem-estar coletivo. Ou talvez não seja nada disso.
Porque não há respostas certas nem óbvias nos livros. As narrativas criadas pelo autor não são ônibus que carregam ensinamentos morais já mastigados, mas caleidoscópios que formam mosaicos diferentes cada vez que olhamos de uma nova perspectiva.
A única pena é que as edições vistas à venda têm acabamento gráfico com páginas grampeadas —o que, aliás, anda se tornando cada vez mais comum no Brasil, mesmo entre editoras grandes e consolidadas, que estão reabrindo um capítulo que já parecia superado na história editorial do país. Mas esse é um assunto para outra hora.
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