Em um contexto repleto de estigmas e tabus, exigências desnecessárias como boletins de ocorrência e autorizações judiciais, além de questões como a objeção de consciência de profissionais da saúde, transformam a busca pelo aborto legal em um calvário na vida de meninas e mulheres. Sem negar a lei diretamente, o que vemos, na prática, é a imposição de manobras e barreiras para impedir que elas acessem um direito previsto há mais de 80 anos no país.
Caso o PL 1.904/2024 não seja arquivado na Câmara dos Deputados, esse cenário irá se agravar ainda mais, visto que o país vive uma epidemia de abuso sexual de crianças e adolescentes. Em 2022, o Brasil registrou cerca de 75 mil casos de estupro —o maior número da série histórica, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Seis em cada dez vítimas eram crianças de até 13 anos, 57% eram negras e 68% dos estupros ocorreram na residência das vítimas.
Sem receberem orientação adequada sobre o próprio corpo e sobre a diferença entre afeto e abuso, essas meninas se tornam alvos frágeis para os abusadores —na maioria das vezes, seu próprio pai, avô ou tio que, de forma contínua e reiterada, pratica a violência dentro de sua própria casa. Um cenário que dificulta ainda mais romper o ciclo de violência e as ameaças que visam impedir a denúncia do agressor e o acesso ao aborto legal no país.
As consequências são devastadoras. No Brasil, temos taxas elevadas de gravidez infantil, de acordo com dados do DataSUS. Em 2022, foram mais de 14 mil gestações entre meninas de até 14 anos —uma média estarrecedora de 38 meninas tornando-se mães a cada dia no país.
O Brasil delega a maternidade forçada a essas meninas vítimas de estupro, prejudicando não apenas o futuro social e econômico delas, como também a saúde física e psicológica. E perpetua, dessa maneira, ciclos de pobreza e vulnerabilidade, como o abandono escolar, com impactos profundos na vida de mães solo, principalmente de meninas e adolescentes negras.
O PL 1904/2024 é, portanto, um retrocesso que pode colocar o Brasil entre os países mais violadores dos direitos de meninas e mulheres. Essa investida inconstitucional não será pactuada pelo Ministério das Mulheres e pelo governo federal, que vem trabalhando na revisão de normas e portarias relacionadas à saúde reprodutiva para adequação à legislação vigente, com ações de prevenção à gravidez e à violência sexual, a partir da promoção dos direitos humanos e de diretrizes científicas.