“A São Paulo de 1912 era mais parecida com a velha cidade provinciana e patriarcal dos primórdios da República do que com a cidade tentacular de hoje, e cujo vertiginoso progresso nos enche de muito orgulho e algum susto”. A afirmação consta do programa original de inauguração do Teatro Cultura Artística, em 1950. Fechado há 16 anos após um incêndio que o consumiu, ele reabriu as portas neste fim de semana.
A menção à 1912 diz respeito à fundação da centenária sociedade Cultura Artística, mantenedora do teatro e responsável por trazer a São Paulo, ao longo dos anos, concertos e artistas nacionais e internacionais de excelência. Durante o longo período da restauração –que envolveu a captação de R$ 150 milhões— as temporadas da Cultura Artística foram realizadas na Sala São Paulo.
O teatro reconstruído tem agora uma sala para 750 espectadores —com um palco para no máximo 60 músicos—, e um auditório com 150 lugares. Os dois moderníssimos espaços não buscam competir com a Sala São Paulo, e preenchem uma lacuna que a cidade tinha de salas mais intimistas preparadas para apresentações acústicas, com a ideia de privilegiar solistas, música de câmara e formações orquestrais ou corais de menores proporções, tal como é a Sala Cecília Meireles para a cidade do Rio de Janeiro.
Se as salas de espetáculo –bem como camarins e espaços adequados criados para os projetos educacionais, de apoio a jovens músicos, mantidos pela Cultura Artística– são totalmente novos, toda a entrada do teatro restaurou a arquitetura original concebida por Rino Levi há mais de 70 anos, a começar pelo mural externo “Alegoria das Artes”, de Di Cavalcanti, que tem quase 50 metros de comprimento por 8 de altura.
O programa apresentado neste final de semana reproduziu parcialmente o da inauguração em 1950. Assim como naquela data, o público ouviu obras de Camargo Guarnieri e Villa-Lobos.
Em 1950, Guarnieri (aos 43 anos), e Villa-Lobos (aos 63), regeram suas próprias obras, e a cantora solista foi Magdalena Lébeis. Desta vez as obras do paulista e do carioca foram interpretadas pela Orquestra Sinfônica Municipal conduzida por Roberto Minczuk, e tendo como convidada a mezzo soprano Carolina Faria.
Nas peças instrumentais de Guarnieri apresentadas na abertura do programa deste final de semana, “Dança Brasileira” e “Encantamento”, o som da Sala chamou a atenção pela clareza com que cordas, madeiras e metais podem ser discernidos: para quem está na plateia central é um som caloroso, que tende um pouco para o grave.
Já para quem se sentou bem atrás, no balcão superior, a compreensão dos trechos cantados (e mesmo da voz falada de autoridades e maestro) não foi muito nítida. Uma sala é um organismo vivo, e só após ser “colocada para vibrar”, ao longo dos tempos, irá revelar detalhes e sutilezas.
Nada disso alterou a qualidade da performance de Carolina Faria, tanto na complexa “Serra do Rola Moça”, de Guarnieri –que inclui um efeito vocal-orquestral espetacular quando as personagens do poema de Mário de Andrade se precipitam “no abismo”, como na “Tarde Azul” de Villa-Lobos.
Ver Minczuk conduzir a orquestra numa sala menor permite admirar mais de perto o modo como esculpe as sonoridades, como separa com clareza frases e seções, como deixa o templo fluir de forma compacta, sem rigidez.
Nas “Bachianas Brasileiras nº8” (também de Villa-Lobos), ele está totalmente em casa, a ponto de poder olhar para trás –na direção do som de um celular que tocava com estardalhaço na plateia–, no meio da complexa fuga, sem hesitar ou minimamente ameaçar se perder.
Talvez, entretanto, uma obra como essa, que prevê orquestra robusta, no limite das dimensões do palco, já fique um pouco pesada no espaço, dificultando um pouco o delineamento auditivo das cordas. O dia, porém, era de festa, e também de prestar tributo à história do teatro.
A temporada de assinaturas no novo Teatro Cultura Artística começa com tudo nos próximos dias 25, 26, 28 e 29 de agosto, com a Filarmônica de Câmara Alemã de Bremen e o pianista Jan Lisiecki: promete ser imperdível.