“Todo mundo quer ter acesso para levar mantimentos, suprimentos para os animais, para o gado, alimentação para os retiros onde cria o gado. Mas todo ano tem um período de carência para esperar até meados do dia 15 de julho para que os carros tenham acesso à Ilha do Bananal. Ano passado o rio secou muito rápido devido às grandes estiagens. Esse ano também, com a falta de chuvas não teve enchente e o rio já está no seu nível mínimo de água”, explicou o brigadista ao g1, poucos dias antes de ser morto na porta de casa.
Sidiney de Oliveira registrou situação no Rio Javaés antes de morrer — Foto: Reprodução
No vídeo feito por Sidiney é possível ver a preparação para a travessia. Com o capô aberto, uma pessoa dirige bem devagar enquanto outras fazem a orientação para que o motorista não pare para não correr o risco de atolar nos bancos de areia.
O nível da água não ultrapassa a altura dos pneus da caminhonete.
O brigadista chegou a comentar que moradores de Formoso do Araguaia e municípios do Mato Grosso vão para a Ilha do Bananal por uma estrada vicinal da BR-242, que não tem pavimentação. A via fica alagada no restante do ano e no mês de julho seca, dando passagem à região de forma mais rápida.
Travessia foi devagar, mas motorista chegou à outra margem — Foto: Reprodução
Além da estiagem, o que também afeta o nível do Javaés é a retirada de água para plantações da região, segundo o brigadista. As consequências são sentidas pelos moradores de aldeias indígenas da ilha, que dependem dos rios para a sobrevivência.
“Os indígenas hoje dependem da água desse rio praticamente para tudo, para tomar banho, para toma água e nem todas as comunidades têm poços artesianos. Acaba que com a retirada da água para os plantios, o nível desce muito rápido e afeta, de certa forma, os ribeirinhos, os indígenas”, lamentou o brigadista antes de morrer.
Sidiney conhecia muito bem a região e chegou a se posicionar sobre os prejuízos ao meio ambiente, que para ele que poderão ser imensuráveis no futuro. “A água está secando muito rápido, veículos estão passando por dentro do rio, que era para acontecer só em julho. Gravei esse vídeo dias atrás e já está passando veículo dentro do rio, então é preocupante a situação”.
Estudos comprovam menor nível
A percepção de um menor nível de água no rio Javaés e em toda bacia hidrográfica do Rio Araguaia não é somente de quem vive na região. Pesquisadores que trabalham em estudos relacionados a problemas ambientais na Ilha do Bananal apontam que o nível realmente está baixando nos últimos 40 anos.
De acordo com pesquisador Ludgero Cardoso Galli Vieira, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Universidade de Brasília (UNB), o relato do brigadista e o vídeo comprovam a situação, já que a travessia começou mais de um mês antes do previsto.
Um artigo científico que teve a participação do pesquisador foi publicado em fevereiro deste ano no jornal acadêmico internacional Hydrobiologia, e citou o problema no nível da água da bacia do Araguaia.
“Assistir o vídeo da caminhonete atravessando o rio Javaés de uma margem a outra no mês de junho impressiona, até mesmo pelo relato de moradores que habitam aquela região e que dizem que tais travessias ocorrem geralmente no mês de julho e esse ano antecipou. Em si só esse evento é preocupante porque há um rio que corre ali formando a grande Ilha do Bananal, a maior ilha fluvial do mundo. Temos observado que cada vez mais essa região tem perdido água”, explicou.
Além da menor lâmina de água, as vazões dos afluentes também estão sendo afetadas. “As profundidades estão menores, as vazões de água estão menores esse vídeo corrobora vários estudos, inclusive um nosso que tem demonstrado que a bacia hidrográfica tem perdido vazão de água, ou seja, a quantidade de água que passa em metros cúbicos na seção do Rio Araguaia e de vários de seus afluentes nos últimos 40 anos está diminuindo. Não só a vazão de água, mas tem diminuído a superfície, a lâmina d’água em toda a bacia”.
Desmatamento não colabora
O pesquisador também explicou que conforme boletim de monitoramento hidrológico da bacia do rio Araguaia, produzido pelo Serviço Geológico do Brasil, em pontos próximos à Ilha do Bananal, nas estações de Bandeirantes (GO) e São Félix do Araguaia (MS), é possível perceber que até meados de abril, os níveis da bacia chegaram perto da cota mínima.
A partir da metade de abril, houve uma entrada de água muito grande, elevando essa cota, mas que a partir de maio, baixou novamente, alcançando a cota mínima. Mas o problema é que essa água não permanece na bacia por causa de efeitos do desmatamento.
“Temos observado a pouca retenção de água na bacia hidrográfica do Araguaia e uma entrada rápida no canal do rio. Então como nós temos perdido muita vegetação na bacia, principalmente aquela vegetação nas APPs [Área de Preservação Permanente] ao longo do rio, e o solo começa a ser impermeabilizado tanto para agricultura quanto para pecuária até promovido pelo desmatamento e por cidades, a água deixou de infiltrar no solo e abastecer o lençol freático, os próprios corpos hídricos. Isso faz com que haja um efeito muito de entrada de água nos rios que eleva sua cota muito rapidamente. Mas ao mesmo tempo perde muito rápido, porque a água não foi presa na bacia”, afirmou o pesquisador.
Portanto, para Ludgero, uma das explicações para a antecipação na baixa no nível do Javaés e essa entrada e saída rápidas de água, que não manteve a lâmina de água no tempo certo.
“Muito provavelmente são os mesmos efeitos danosos às bacias hidrográficas que nós temos alertado há muitos anos. Um elevado desmatamento em toda a bacia hidrográfica, principalmente nas áreas de preservação, uma impermeabilização do solo promovida pelo próprio desmatamento e pelo cultivo da agricultura, pecuária, levando a uma perda de infiltração de água, o que reduz significativamente a quantidade de água nos corpos hídricos”, destacou pesquisador.
Para ele, a situação não pode ser analisada de forma isolada, pois também há muita influência das mudanças climáticas, que apontam atraso no início das chuvas e maior tempo de seca.
Assassinato do brigadista
Sidney Silva foi morto a tiros na porta de casa em Formoso do Araguaia — Foto: Reprodução
As informações apuradas na primeira semana de investigações apontam que os tiros foram disparados de uma casa abandonada que fica em frente ao local onde o brigadista estava. Um vizinho também chegou a relatar que antes de amanhecer, viu um homem em uma motocicleta na mesma rua onde aconteceu o crime, observando o local.
Brigadista Sidney Silva é assassinado em Formoso do Araguaia — Foto: Reprodução/redes sociais
Sidiney atuava na região como brigadista combatendo incêndios florestais, principalmente os de grandes proporções que costumam atingir a Ilha do Bananal e cidades que ficam nas proximidades.
Pelo vasto conhecimento na Ilha do Bananal, Sidiney deu apoio logístico às equipes da Funai em 2019, quando foram avistados indígenas isolados durante um sobrevoo de helicóptero. Ele também era presidente da Associação de Brigadistas da Brigada Federal (Brif) Nordeste.
Brigadista atuava em defesa da Ilha do Bananal — Foto: Reprodução
No ano passado, ele foi selecionado como chefe de esquadrão do Prevfogo, do IIbama. Tinha conhecimento também no manejo do equipamento Sling Dragon, que segundo o órgão, é usado em queimas prescritas a partir de helicópteros. Para este ano, ele também já havia sido contratado para seguir com os trabalhos pelo Ibama. Mas morreu antes de dar início aos combates do período de estiagem.
Após o anúncio da morte, além do Ibama, outros órgãos divulgaram notas de pesar, lamentaram a morte de Sidiney e repudiaram a ação criminosa.