Sem precisar tocar nas cicatrizes da Lava Jato. Saem o BNDES e as empreiteiras. Entram o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e o respaldo de 82 países.
Ascensão
Em 2003, primeiro ano do governo Lula, o Brasil iniciou uma mudança de papel na arena internacional: de receptor de ajuda externa a parceiro de desenvolvimento de países pobres.
O combate à fome e à pobreza é tarefa inadiável. É necessária uma nova aliança mundial contra a exclusão social (…). Países como o Brasil não podem ficar alheios. Os que dispõem de maior capacidade podem e devem ter políticas solidárias e fraternas em favor das nações mais necessitadas.
Lula, em São Tomé e Príncipe, em dezembro de 2003, na primeira viagem presidencial à África
Ao final do segundo mandato, o Brasil já fornecia mais apoio internacional para países pobres do que recebia de países ricos.
As principais formas de ajuda eram perdões de dívidas (mais de US$ 1 bilhão só na África), projetos de cooperação em várias áreas sociais e doação de alimentos.
Mas o lado mais importante desta nova face externa do Brasil foram os negócios.
Junto com a diplomacia brasileira, embarcaram para a África e a América Latina centenas de empresários brasileiros. Muitas vezes, no mesmo avião. Na primeira viagem à África, Emílio Odebrecht pegou uma carona até Angola, onde a empresa já tinha negócios bilionários desde antes de Lula.
Ao longo dos governos Lula e Dilma, empreiteiras brasileiras receberam mais de US$ 3 bilhões do BNDES para construírem obras no exterior. Outros ramos da economia foram beneficiados. Só na África, a balança comercial brasileira saltou de US$ 6 bilhões para cerca de US$ 30 bilhões.
Não foi um acaso. Os negócios foram uma peça central desse movimento externo do Brasil.
“O senhor fala muito dos empresários. Eles assumiram a linha de frente nas relações com a África?”, questionei Lula, em uma entrevista em 2013, no Instituto Lula, do qual era presidente de honra.
“Deixa eu te contar por que eu falo muito dos empresários. É porque nós, os dirigentes políticos, fazemos o discurso, o Itamaraty prepara o memorando, mas para as coisas acontecerem tem que ter os agentes que vão fazer as coisas acontecerem. Você percebe?”, respondeu Lula.
Fora da Presidência, Lula seguiu promovendo essa agenda em viagens internacionais. Parte delas, pagas, justamente, pelas empreiteiras beneficiadas pelo BNDES.
“Não há conflito de interesse”, disse Lula na entrevista. Era 18 de dezembro. Três meses depois, em 17 de março de 2014, foi deflagrada a primeira fase da Lava Jato.
Derrocada
A devassa de Curitiba chegou ao Instituto Lula. Em 2019, a PF concluiu que as palestras eram legais. Mas considerou que doações da Odebrecht para o instituto eram propina. Em 2020, Deltan Dallagnol e equipe denunciaram Lula. Em 2023, Ricardo Lewandowski, então ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), suspendeu o processo.
No meio tempo, em 2017, os empréstimos do BNDES para construtoras fazerem obras no exterior passaram a figurar entre as mensagens mais compartilhadas entre os grupos políticos que nasciam no WhatsApp —segundo monitoramento feito à época. Ainda pouco se falava em “bolsonarismo”.
As imagens das construções, com os valores dos financiamentos, viralizaram, se transformando em um símbolo fácil da “corrupção do PT”.
Um símbolo manco, contudo. Não prosperaram denúncias de corrupção envolvendo as obras e autoridades brasileiras. Além disso, a grande maioria dos empréstimos foi paga.
Uma exceção é o aeroporto de Nacala, construído pela Odebrecht em uma região de Moçambique sem demanda aérea. Virou um elefante branco. O país não conseguiu pagar o BNDES e deu um calote de US$ 125 milhões.
Ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos, a Odebrecht revelou que realizou “pagamentos corruptos” no valor de US$ 900 mil para autoridades moçambicanas, entre 2011 e 2014, período de construção do aeroporto. Autoridades brasileiras não foram citadas.
Jair Bolsonaro explorou o tema do BNDES na campanha eleitoral de 2018 — e em seu primeiro ano de governo. Disse que o banco tinha uma “caixa-preta”, com os dados da corrupção do PT.
O banco teve, sim, anos sem transparência. Mas, naquela altura, todos os contratos já estavam públicos. Bolsonaro tentou, mas não descobriu nada de errado.
Retorno
Dilma sofreu impeachment. Lula foi preso. Bolsonaro foi eleito presidente. Lula foi solto. Lula derrotou Bolsonaro. Os três Poderes foram invadidos.
Apesar das voltas que o Brasil deu, apenas 15 dias depois do 8 de Janeiro, o presidente prometeu a empresários uma volta ao passado: “O BNDES vai voltar a financiar projetos de engenharia para ajudar empresas brasileiras no exterior e para ajudar que os países vizinhos possam crescer”.
A tentativa de fingir que nada aconteceu não colou na opinião pública. O fantasma BNDES-empreiteiras da Lava Jato ia seguir assombrando qualquer desejo de reaproximação com a América Latina e a África. As relações continuaram em suspenso.
Até que a presidência brasileira no G20 ofereceu a oportunidade de virada. O Brasil decidiu repaginar uma ideia velha: criar uma aliança global contra a fome, sob liderança de Lula. Nada de empresários —pelo menos nas declarações oficiais.
Em 2004, Lula fez exatamente isso e teve o apoio de 107 países. Mas depois a iniciativa foi desaparecendo lentamente, sem deixar vestígios.
Em janeiro deste ano, o Itamaraty e o MDS (Ministério do Desenvolvimento Social) reapresentaram a ideia para as demais delegações estrangeiras do G20.
Em um primeiro momento, os países torceram o nariz. Para que outra iniciativa contra a fome, se o mundo já tinha organizações especializadas, declarações, alianças?
Após meses de negociação, o humor mudou. E, hoje, 82 países —inclusive a Argentina, que tem dado trabalho para os diplomatas do G20— se aliaram ao Brasil.
Assim, sem a dor da Lava Jato, o Brasil retorna à agenda do combate à fome no mundo —e à possibilidade de voltar a fazer projetos na África e na América Latina.
Lula, que dizia que a síndrome de vira-lata impedia o Brasil de investir mais em ajuda ao desenvolvimento, tem agora a promessa de US$ 25 bilhões do BID. Muito mais do que o Brasil jamais imaginou ter para gastar. E sem ter que mexer uma vírgula sequer num Orçamento já em disputa.
Diante do futuro, vale relembrar o passado. Mia Couto, um dos principais escritores africanos, já lamentou que houve uma “desilusão” na África com a aproximação do Brasil no governo Lula. Em vez de povo irmão, o Brasil virou o primo rico.
A visão internacional do Brasil que vai vigorar daqui para frente, em tempos de Aliança, está por construir.
* Amanda Rossi é repórter do núcleo investigativo do UOL e autora do livro-reportagem “Moçambique, o Brasil É Aqui – Uma Investigação sobre os Negócios Brasileiros na África”, publicado pela editora Record, em 2015, e finalista do Jabuti 2016.
Opinião
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